Então é assim? Eu, que sempre fui o gostosão, que te dei prazer em noites solitárias, em escapadinhas pecaminosas, fui rebaixado. Humilhado. Não que a fama de mau não me caia bem. Mas desta vez fui tachado de maligno. De cancerígeno. A Organização Mundial de Saúde (OMS) se organizou para me desmoralizar. Juntou 22 experts de dez países para avaliar 800 estudos sobre meus efeitos nos corpinhos e corpanzis mundo afora. A conclusão: há indícios suficientes nessas pesquisas para afirmar que, quanto mais você me come, maior seu risco de ter câncer. Muitos já suspeitavam que eu não fazia bem quando comido exageradamente – e meus fãs raramente são moderados. Agora, a OMS crava que a suspeita estava correta. Se você sucumbe a 50 gramas, ou duas míseras fatias, de minha delícia por dia, seu risco de câncer colorretal aumenta em 18%. Não satisfeitos, esses especialistas me colocaram na mesma categoria de substâncias vis, como o cigarro, o álcool e até o amianto. Aí, não.
Mas alto lá. Estou frito, não morto. Vou defender minha honra. Esse meu rebaixamento não quer dizer que eu seja tão nocivo quanto os vilões de meu grupo. Significa somente que, em ambos os casos, há provas do malefício. É menos pior do que fizeram soar. A mesma OMS diz que 1 milhão de pessoas morrem anualmente por causa dotabaco. Outras 600 mil pelo consumo excessivo do álcool. Estima, porém, que as mortes causadas por minha família, a das carnes processadas, estejam em torno dos 34 mil. Não é pouco, eu sei. É o preço que eu pago por ser gostoso. Por não haver substituto para minha crocância, meu estalar em sua língua, meu sal, minha gordurinha. Já está com água na boca? Controle-se! Eu não presto. Eu sou um nada, um calhorda. Eu te deixo doente. Não, calma, também não é assim. Desculpem, a OMS abalou minha autoestima.
Eu sou a representação mais saborosa do amor e do ódio. O verdadeiro fruto proibido. O seu amor bandido. Você me quer, mas não devia. Os vegetarianos me abominam. Sou o inimigo mais impiedoso das dietas. Na Bíblia, no Alcorão e na Torá, há recomendações explícitas contra meu consumo. Dizem que a carne do porco, animal que é minha matriz, é impura. O bicho chafurda, não rumina e come o que vê pela frente. Mais adiante, no Novo Testamento, Jesus relativiza. Ensina que impuro é o que sai do homem, não o que ele ingere. Por isso, a grande maioria dos cristãos não tem restrições alimentares. Há registros de que os chineses já salgavam a barriga do porco para preservar a carne – e o resultado era euzinho – em 1500 antes de Cristo. Eu sou uma das mais antigas gulodices do planeta. Na Idade Média, camponeses exibiam com orgulho, em suas janelas, o pedaço de mim que conseguissem comprar. Meu nome vem do francês e do alemão arcaicos, de palavras que remetiam a “back”, ou às costas do porco. Da barriga ou do lombo, estou aí derretendo e entupindo corações há séculos.
A carne de porco, inclusive na forma do pecado, a minha, é a mais consumida do mundo. Como quase tudo na história, os chineses me inventaram, os ingleses me industrializaram e os americanos me glorificaram: eu estou presente em 80% dos lares dos Estados Unidos. Nos países onde o inverno é cruel, me deitam ao lado de um bom ovo frito logo no café da manhã. Eu sou a garantia de um dia quentinho por dentro. Sou o conforto. Vou muito bem com hambúrguer. No macarrão à carbonara (os italianos me chamam de pancetta e eu adoro). No medalhão. Na batata frita. Ou na assada. Meu fã-clube achou até que eu não devia restringir minha atuação ao prato principal. Me incluiu em sobremesas, como brownies, cupcakes e pirulitos. Alguns, mais ousados, me tiraram da cozinha. Eu dou sabor a fio dental e aroma a perfumes e óleos de massagem. Uma turma ainda mais empolgada fez uma igreja para me louvar, a United Church of Bacon. Os caras celebram casamentos e dizem que eu tenho mais de 12 mil devotos pelo mundo. Esse número está obviamente subestimado. Tudo bem que a filosofia de minha seita tem mais a ver com o ateísmo do que com meus poderes sobrenaturais. Eles dizem que louvar um deus invisível ou minha existência dá no mesmo. De qualquer forma, estou honrado.
Ainda assim, estou sob ataque. Não só eu. Toda a minha família. E, quando eu digo família, não estou me referindo ao Kevin, o magrelo rebolativo do filme Footloose. Nem ao Francis, o pintor figurativo doidão. Nem ao outro Francis, o filósofo. Aliás, uma maldadezinha. O Francis se celebrizou com meu nome e como pai da ciência moderna. O que é uma ironia, já que é a própria ciência que está em campanha de difamação contra mim. Mas ironia mesmo é o fato de que Francis morreu, em 1626, depois de pegar uma pneumonia. Ele estava fazendo testes sobre como o gelo podia funcionar na preservação de... carnes. Salmoura, Francis! O segredo é o sal que tempera meu tenro tecido. O problema é que, na sanha de me industrializar e consumir em larga escala, foram adicionando nitrito e nitrato a minha carne. Alguns dos estudos dos experts dizem que esses conservantes são os responsáveis pelo perigo que eu represento.
Enfim, a OMS rebaixou, junto comigo, boa parte de meus parentes. Salsicha, presunto, salame, linguiça... Estão todos desolados. Mais tristes do que Plutão depois de virar planeta-anão. O ministro da Agricultura da Alemanha, Christian Schmidt, foi solidário. Disse que ninguém deve ter medo de uma salsicha de vez em quando. Quem me conhece sabe que eu não poderia concordar mais. Milhares de admiradores se mobilizaram em minha defesa. Foram às redes sociais para gritar ao mundo, em CAPS LOCK, que nada vai atrapalhar nosso amor. Muitos preferem a morte. #FREEBACON. Fiquei comovido, galera. Valeu, mesmo! Confesso, porém, que a declaração de amor que mais enterneceu esse coraçãozinho entupido foi a de uma senhora do Brooklyn, em Nova York. O nome dela é Susannah Mushatt Jones. Ela é a mulher mais velha do mundo, segundo oGuinness, o livro dos recordes. Tem 116 anos. Nasceu em 1899. Susannah atribui sua incrível longevidade a alguns fatores previsíveis: ela dorme bem, nunca bebeu, nunca fumou e diz que é feliz. Então, ela revela o verdadeiro segredo de sua felicidade: eu. Ela me devora. Todo dia. Sem culpa. Come quatro fatias de minha suculenta carne no café da manhã. Vez ou outra, embrulha uma fatiazinha num guardanapo e guarda para me saborear mais tarde. Em seu aniversário, em julho, Susannah assoprou as velinhas num bolo ornamentado por mim. Que lindo, Susannah!
Eu sei que a OMS lida com regras, não com exceções. Então, vou finalizar propondo um acordo. Você que me usa e abusa, que não vive sem mim: vamos continuar nos amando. Mas com moderação. Vamos nos ver menos, mas vamos manter a paixão acesa. Não quero casar com você. Quero ser seu amante, em escapadas esporádicas. Eu estarei sempre aqui, pronto para ser seu pecado da gula.
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